Memórias do tempo de outros tempos

 

imagens: URL

geada santa nostalgia

Entrámos ontem na estação do Outono. Por cá choveu e o céu esteve cinzento, mas apesar disso até esteve bastante quente, ainda sinal do efeito da forte trovoada que se fizera sentir na véspera.

Seja como for, e apesar das estações do ano estarem nitidamente a perder as suas características, levando até alguns entendidos a prognosticarem que no futuro haverá apenas duas estações, a estação das chuvas e a estação seca, a verdade é que a partir daqui já não se podem esperar os quentinhos dias de Verão, as idas à praia, os piqueniques sob deliciosas sombras ou longas noites na esplanada. Os dias já estão mais curtos e depois da habitual mudança para a hora de Inverno, no último Domingo de Outubro, vamos entrar em mais um ciclo de seis meses de adormecimento, repletos de dias tristonhos e enfarruscados, tão característicos do Outono e Inverno.

Neste constante marchar do ciclo da vida, do tempo e das estações, não tardam as primeiras geadas e com elas o tempo frio de rachar.

Recuando no tempo, até aos meus tempos de escola primária, não tenho dúvidas de que nessa altura as estações tinham mais personalidade, eram mais vincadas, pelo que o Inverno era mesmo rigoroso, com muitas chuvas, muitos ventos e muita geada e o Verão era mesmo quente. Era muito normal não se registar qualquer precipitação durante os meses de Junho, Julho e Agosto. Até mesmo Setembro era muito quente. A este respeito recordo que o povo da aldeia organizava a reza do terço na capela do largo, pedindo aos Deus e aos Santos que os contemplasse com a generosa oferta da chuva, tão precisa às pessoas, aos animais e às plantações nos campos, onde a batata queimava e o milho definhava. A diferença entre a chuva e a seca poderia resultar numa colheita abundante ou num acrescento de miséria à habitual pobreza das pessoas da aldeia.

Opostamente, durante os rigores do senhor Inverno, as rezas eram no sentido de parar o excesso de chuva de modo a permitir alimentar o gado, fazer o trabalho nos campos e nos pinhais. Por vezes chovia copiosamente durante vários dias seguidos e as mulheres nem sequer podiam ir à horta colher uma folha de couve para preparar o caldo da janta. Os caminhos andavam sempre alagados e os regatos e a ribeira da aldeia abandonavam os leitos e alagavam as margens, arrastando as medas de palha e as moreias de cana de milho, entupindo levadas e regueiros. Os ventos sempre fortes arrancavam as árvores e destapavam os frágeis telhados das casas. Recordo que no largo da aldeia, mesmo defronte da escola, existiam umas frondosas mimosas, e quase todos os anos uma delas sucumbia à fúria do vento. Claro que para a pequenada era uma alegria, brincando por entre um emaranhado de ramos e folhas da árvore caída. Tudo era pretexto para brincadeira.

Quanto ao tempo de geada, quando acontecia durava longos dias e os terrenos ficam encascados, duros de noite e enlameados de dia. Hoje em dia, de modo geral, as escolas têm alguma climatização e as próprias crianças dispõem de boas roupas adequadas ao tempo de chuva e de geada, mas no meu tempo de criança não era bem assim. As roupas eram escassas e pobres, o calçado fraco e roto e as escolas, aquele modelo clássico do Estado Novo, eram frias. Tinham até uma tradicional lareira mas muito raramente eram acendidas. No meu caso, apesar de invernos rigorosos de frio e chuva, nunca vi acenderem uma fogueira na lareira da sala de aulas. Por um lado não havia lenha e por outro a escola dessa altura não tinha pessoal auxiliar como agora pelo que as tarefas básicas de limpeza, da sala, do recreio e das retretes, eram realizadas pelos próprios alunos.

Ora nos tempos de geada, o truque para aquecer as mãos, para além do tradicional jogo da sardinha, que noutra altura desenvolverei, era aquecer em casa, no borralho da fogueira, uma pedra do tamanho de uma maçã. Esta era depois embrulhada em papel de jornal e levada para a escola no bolso. Enquanto durava o calor da pedra as mãos andavam quentes, mas esta situação nem sempre era tolerada pelas professoras, que não permitiam distracções com o constante aquecimento.

Também no terreiro exterior ao recreio, era frequente a criançada acender fogueiras para se aquecerem, aproveitando restos de lenha dos pinhais próximos. Muitas vezes queimava-se um simples jornal.

Claro que por vezes a brincadeira acabava a enfarruscarem-se uns aos outros com os carvões e a cinza. Depois, já na sala de aula, a professora completava o aquecimento com umas valentes bolachadas aplicadas nas mãos dos brincalhões.

Bons tempos, boas recordações, mas com alguma amargura misturada pelas dificuldades próprias dos rigores do tempo, das professoras e da própria pobreza da maioria das crianças e suas famílias.

Mesmo assim, sabe bem recordar estas consequências do tempo de outros tempos.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Comunhão Solene ou Profissão de Fé

Revista GINA

Una, duna, tena, catena...

Pub-CF